Quando o gesto se torna uma dança? Quando o gesto se torna poesia?

J’ai tendu des cordes de clocher à clocher; des guirlandes de fenêtre à fenêtre; des chaînes d’or d’étoile à étoile. Et je danse.

Eu estendi cordas de campanário à campanário; guirlandas de janela à janela; correntes de ouro de estrela à estrela. E eu danço.

Illuminations, Arthur Rimbaud

Avançando na trilha da investigação do tônus, retomo o artigo anterior e sigo as suas pegadas.

Afinar o tônus é encontrar o tom, a tonalidade, o ritmo, a melodia, a poesia. Minha tonicidade contagia o outro; o outro me contagia com a sua tonicidade. Eu sou a afinadora, a compositora e a executora de uma obra sinfônica. E de repente me percebo como uma maestrina conduzindo a sinfonia de minha vida; sinto-me vivendo a vida como uma grande obra de arte. Sou arte, sou poesia.

Sinto que o gesto se torna poesia quando permito com que o movimento nasça dos ossos, da musculatura profunda, esquelética.  

Experimento, primeiramente com os olhos fechados, deixar-me expandir por dentro como uma flor ao abrir suas pétalas. Quando a abertura dos espaços no interior do corpo acontece em sua totalidade e integralidade, o contato consciente comigo mesma se estabelece e a tonalidade tônica dos tecidos (ossos, músculos, fáscia, pele, fluidos….) alcança um equilíbrio, equilíbrio dinâmico. E, então, danço por dentro de mim mesma.

É esse o território do gesto e movimento orientados, conscientes e presentes; do movimento expressivo e criativo; do fazer artístico; da vida como obra de arte.

E, então, eu danço.

Imagem: https://pin.it/pEIeJsJdG Pinterest

Contemplo o desabrochar da flor. Deixo florescer.

Fonte do vídeo: Flor de Lótus https://pin.it/5q8rVDOur Pinterest

Equilibrar-se pra quê?

Dando continuidade à matéria anterior, “Quando o tônus entra em equilíbrio. Ou equilibrar-se pra quê?“, questiono-me sobre o grau de importância em atingir uma zona de equilíbrio. Reconheço que o encontro do caminho do meio e de uma zona de equilíbrio – um caminhar pelo mundo afora seguindo por uma rota central, bem como gravitando em torno do meio sem me fixar nos limites – torna-me mais apta a responder aos inúmeros desafios que a vida me traz. Minha experiência de vida, minha experiência como eutonista e educadora somática mostra que a fixação nos pontos extremos pode ser perigosa e ameaçar meu bem-estar: pode me fazer desabar (na fixação em hipotonia) ou enrijecer (na fixação em hipertonia), lançando-me água abaixo, encolhendo minha visão, sugando minha lucidez e domínio de mim.

Sim! Importa equilibrar o tônus. Mas a busca e alcance do caminho do meio, das faixas onde o tônus oscila em equilíbrio, é um desafio.

Mas o que é mesmo o tônus? Qual a diferença entre tônus e força muscular?

O tônus muscular é a tensão muscular involuntária presente no corpo mesmo em estado de repouso. É a permanência da musculatura em um estado de alerta constante – em estado de pré-aquecimento -, pronta para agir. O tônus muscular é um estado basal, com influência direta sobre o alinhamento postural e a fluidez de gestos e movimentos, o estado emocional e a qualidade de vida.

A força muscular, de outro lado, é a capacidade de uma estrutura muscular exercer tensão contra uma superfície ou volume fora ou dentro do corpo.

Tônus muscular e força muscular agem em sinergia. Um tônus muscular adequado facilita o relaxamento, a contração muscular e a geração de força. E certas alterações no tônus podem comprometer a realização de movimentos, a força e função muscular, a relação do corpo com a força da gravidade.

O tônus, contudo, não é apenas muscular; é a expressão de nossa vitalidade, o modo como nos relacionamos com o mundo e conosco mesmos. É como um termômetro de nosso estado físico e emocional. É como o fio condutor que conecta corpo, mente e emoções.

As flutuações do tônus

O equilíbrio vem junto com o alcance de um tônus justo – justo quando em consonância com as flutuações de nossas vidas.

Nossas vidas flutuam e o tônus insiste em flutuar. Essa oscilação é vital para que consigamos dar conta das inúmeras situações que a vida nos coloca – em certos momentos precisamos sustentar tônus altos, como numa competição esportiva por exemplo; em outros, como quando dormimos, é preciso atingir um tônus muito mais baixo para conseguir um sono reparador. E assim, no dia a dia, o tônus vai se revelando e manifestando em suas gradações as mais variadas.

Tônus e sistema nervoso

Atente que a dinâmica tônica está intimamente ligada à atividade do sistema nervoso autônomo – sistema nervoso simpático e parassimpático – o qual é responsável pela regulação das funções involuntárias do corpo, como a frequência cardíaca, a digestão, a respiração e o próprio tônus.

Assim, em uma dança entre os sistema neuronal e muscular, a relação de transmissão e recepção de informações entre eles, pelas vias nervosas, acaba resultando em determinadas gradações tônicas dependendo de cada uma das circunstâncias do dia a dia. Em geral, os ritmos, pulsações e tônicas arranjam-se involuntariamente – chegam como respostas espontâneas às situações com as quais nos deparamos. Essas respostas vêm associadas ao repertório de cada um. Se estiver ansiosa, por exemplo, responderei a uma situação desafiante de um modo; se estiver confiante e segura responderei, a essa mesma situação, de outra forma. É precisamente aqui que a consciência da dinâmica tônica pode ajudar a tornar a vida mais leve, mais criativa, mais sábia. Pois ao expandir a percepção sobre as gradações do tônus abro a possibilidade de interferir em algo que é inato e, muitas vezes, inacessível.

Tônus e Eutonia

Em meu trabalho com a Eutonia – ou no papel de educadora ou de aluna – sinto que quando atinjo um nível de abertura de consciência que toca a integralidade do corpo, o tônus emerge e floresce em sua tonalidade e intensidade. Conecto-me, então, com as várias expressões tônicas: o tônus da fala, do olhar, da pele, do músculo, do gesto, da emoção. Alcanço e tomo consciência do tônus em suas gradações e descubro as vias de acesso à inteligência inata dentro de mim.

Porém, tomar consciência e atingir um tônus justo, equilibrado, flexível, flutuante e não fixado, não é uma tarefa fácil. Também não é fácil sustentar esse nível de foco e atenção. As circunstâncias da vida insistem em nos tirar do foco e do caminho do meio. E dependendo das respostas dadas podemos, de súbito, cair na armadilha da fixação tônica e nos aprisionarmos em nós mesmos.

A eutonia, contem um repertório que fornece os recursos para despertar a consciência tônica, ativar as flutuações do tônus (a variação tônica em tônus alto, médio ou baixo) e alcançar um equilíbrio correspondente a cada situação ou desafio. Não importa que não consigamos sustentar esse nível de atenção durante todo o tempo, mas sim conseguir mobilizá-lo quando necessário.

Encontrando minha harmonia, ritmo e melodia

Não se trata apenas de eliminar as fixações tõnicas mas de encontrar as faixas justas dentro das quais as variações tônicas acontecem. Se abaixar muito o tônus, em uma competição esportiva por exemplo, serei eliminada, mas se elevar muito o tônus a ponto de bloquear alguns movimentos também serei eliminada. Caberia então encontrar, em cada experiência, uma zona de equilíbrio em cada uma das faixas de variação tônica. Sim! É um desafio e tanto! Mas possível de ser superado, a cada momento, utilizando recursos tais como os da respiração, estabelecimento da presença no aqui e agora, contato consciente consigo e com o ambiente externo, expansão dos espaços internos do corpo, etc.

A palavra eutonia significa “bom e justo tônus”. A eutonia busca calibrar o tônus e resgatar as flutuações tônicas. Como eutonista e educadora somática, sinto o tônus como se fosse uma corda de violão. Afinar o tônus é afinar a corda e portanto preparar esse instrumento musical para tocar uma melodia de forma harmoniosa. Ao afinar a corda, afino a mim mesma. E esse afinamento, refinamento depende de uma abertura de consciência para o que se passa em meu interior: o sentir e reconhecer as gradações tônicas a cada instante e saber como alterá-las quando necessário (intervir sobre o que é involuntário em mim!). Depende do contato consciente comigo mesma e com o outro.

Afinar o tônus é encontrar o tom, a tonalidade, o ritmo, a melodia, a poesia. Minha tonicidade contagia o outro; o outro me contagia com a sua tonicidade. Eu sou a afinadora, a compositora e a executora de uma obra sinfônica. E de repente me percebo como uma maestrina conduzindo a sinfonia de minha vida; sinto-me vivendo a vida como uma grande obra de arte. Observo…

Eu sou Arte. Eu sou Poesia.

Referências Bibliográficas

Alexander, Gerda – Eutonia : um caminho para a percepção corporal. São Paulo.  Ed. Martins Fontes.

Gainza, Violeta Hemsy – Conversas com Gerda Alexander, vida e pensamento da criadora da Eutonia– Ed. Summus.

Para uma definição atual da eutonia, a partir da idéia de que é uma prática corporal que visa a harmonização do tônus, gosto do artigo de Bortolo, Maria Thereza – “Eutonia, a busca da flexibilidade tônica” – publicado no site da Associação Brasileira de Eutonia.

Foto: Isadora Duncan https://pin.it/7gMqVnUVM Pinterest

Inspirações

INSPIRAR. EXPIRAR. RESPIRAR. INSPIRAÇÕES.

“Só ela ouvia música; aliás, era ela que escolhia, mentalmente, as músicas que ouvia, ouvia secretamente essas músicas.

E dançava com essas músicas; dançava com os olhos, com movimentos de cabeça, com os braços.

Podia estar a ouvir pessoas e estar, ao mesmo tempo, a dançar essas músicas.

Dançava; às vezes, por dentro de si mesma.”

Armando Baptista-Bastos.

Art by Pinterest ( stanleyrosemandance.com )

A Beleza Essencial

“Se a beleza é inerente e essencial à alma, então a beleza aparece sempre que a alma aparece. Essa revelação da essência da alma, o verdadeiro mostrar-se de Afrodite na psique, seu sorriso, é chamada de beleza na linguagem dos mortais. À medida em que exibem sua natureza inata, todas as coisas apresentam a natureza áurea de Afrodite; elas brilham e dessa forma são estéticas.
A beleza não é um atributo como uma película envolvendo uma virtude, meramente o aspecto estético da aparência. É a própria aparência. Se não houvesse beleza, junto com a bondade e a verdade e o uno, nunca poderíamos sentí-los, conhecê-los. A beleza é uma necessidade…; é o modo como os Deuses tocam nossos sentidos, alcançam o coração e nos atraem para a vida.”
“O pensamento do coração e a alma do mundo”, de James Hillman (pgs. 46,47).
Capa: Art by Pinterest

Corpo-Máquina e Corpo Vivo

O que é Eutonia

A Eutonia é uma pedagogia de conscientização corporal que envolve o equilíbrio, a regulação do tônus. Pode ser praticada em sessões individuais ou em grupo, e pode ajudar a harmonizar a postura estática e dinâmica, a respiração e a mobilidade. Pode também ajudar na prevenção e no tratamento de doenças físicas e mentais.

Este método pedagógico e terapêutico foi desenvolvido nos anos 30/40 do século passado por Gerda Alexander. Gerda nasceu em 1908, na Alemanha e cresceu em uma família que cultivava a música, a dança, as artes em geral. Decidiu, desde cedo, seguir os estudos no campo das artes, da música, da dança, do movimento. Porém, aos 16 anos sofreu uma violenta febre reumática que resultou em uma grave doença cardíaca – a endocardite. Aconselhada pelos médicos, ela deveria movimentar-se o mínimo possível para preservar seu ritmo cardíaco e sua respiração; do contrário, seu coração não resistiria. Essa orientação médica levou-a a criar formas de movimento que lhe possibilitassem um gasto mínimo de energia, o que resultou no início da construção de um método pedagógico, terapêutico e de cuidado corporal voltado a busca do uso adequado do tônus muscular na ação cotidiana. Assim, nascia a Eutonia.

Em 1940, já morando na Dinamarca, fundou em Copenhagen a escola onde desenvolveu sua pesquisa baseada na qualidade do movimento com economia de esforço e uso adequado do tônus muscular nas mais variadas situações cotidianas. Em 1957 o método foi por ela denominado de Eutonia. A palavra eutonia – palavra de origem greco-latina – significa tensão em equilíbrio; harmonia entre as tensões que coexistem no corpo (do grego eu: bom, harmonioso e do latim tônus: tensão).

Segundo Gerda Alexander:

…existem várias maneiras de definir o tônus, segundo diferentes autores e disciplinas…Os psicofisiológicos definem o tônus como “a atividade de um músculo em repouso aparente”…O tônus encontra-se em todo organismo vivo e tem, em condições ideais, um nível homogêneo em todo o corpo. Aumenta com a atividade e diminui com o repouso. Todos sabemos que uma criança parece mais pesada de ser levantada dormindo do que estando acordada. Seu peso real continua inalterado, porém a densidade do corpo se altera de acordo com o nível de tônus. É preciso mais energia para movimentar um corpo mole e relaxado do que um outro tenso e tonificado. (Eutonia: um caminho para a percepção corporal. 1983, 12).

Um dos principais benefícios da Eutonia é a promoção de ajustes musculares. Esse método orienta o aluno/paciente a reconhecer as tensões musculares excessivas ou insuficientes e a trabalhar em sua regulação, o que pode reduzir dores e desconfortos musculares. Ademais, baseia-se na ideia de que o corpo humano tem a capacidade de se autorregular e de encontrar seu próprio equilíbrio desde que tenha condições adequadas para isso.

A disciplina consiste em uma série de exercícios, toques ou auto-toques e práticas que despertam e desenvolvem a percepção corporal e a consciência das tensões e seus desequilíbrios: tato consciente; consciência dos ossos; espaço interno e volume corporal; contato consciente consigo mesmo e com o outro; reflexo postural; movimento eutônico.

Mas, para além do tônus muscular, as vivências eutônicas contemplam também camadas mais profundas do ser humano; camadas que tocam o tônus mental e psíquico. Nas palavras de Gerda:

A Eutonia propõe uma busca, adaptada ao mundo ocidental, para ajudar o homem de nosso tempo a alcançar uma consciência mais profunda de sua realidade corporal e espiritual, como uma verdadeira unidade. Convida-o a aprofundar essa descoberta de si mesmo sem se retirar do mundo, mas ampliando sua consciência cotidiana, permitindo-lhe liberar suas forças criadoras, possibilitando-lhe um melhor ajustamento a todas as situações de vida e um enriquecimento permanente de sua personalidade e de sua realidade social. (Eutonia: um caminho para a percepção corporal. 1983, 9).

A Eutonia pode ser praticada por qualquer pessoa, independente da idade ou habilidade física. Pode ser praticada em casa ou em um ambiente de ensino e/ou terapia, e pode ser uma alternativa ou um complemento a outros tratamentos médicos. Se está procurando uma maneira de melhorar sua saúde e bem-estar, esse método sempre será uma opção viável e eficaz para você.


Algumas Reflexões e Insights no “Reflexões”

Como terapeuta transpessoal, eutonista e educadora do movimento, passei anos me trabalhando e trabalhando com pessoas que desejam melhorar a qualidade de suas vidas – seja através da consciência corporal, gestual e motora; seja através do diálogo e da meditação. Algo que aprendi e continuo aprendendo é que as auto-descobertas sobre a integração corpo-mente são fundamentais para a saúde e o bem-estar.

O grau de consciência de que somos uma totalidade composta de várias camadas – desde as mais sutis até as mais densas – reflete-se na relação de nossos pensamentos e sentimentos com as sensações, bem como no modo como lidamos com o auto cuidado e com a percepção e organização do corpo no espaço. O grau e tipo de interação entre as várias camadas de nós mesmos desempenham um papel crucial na forma como nos sentimos, pensamos e nos comportamos. Sustentar a consciência dessa dinâmica em nossas vidas cotidianas resulta em corpos mais harmônicos, equilibrados e auto-regulados e, consequentemente, no desenvolvimento da capacidade de expressar nossos pensamentos, sentimentos e necessidades com mais autenticidade e espontaneidade.

Em minha experiência, percebo que os desdobramentos do contato consciente com o corpo são: mais saude e bem-estar, e maior criatividade e perspicácia para lidar com os desafios que a vida nos apresenta.

Após uma sessão, após uma vivencia, sinto que o trabalho permanece ao longo do dia: manifesta-se numa fala mais sensível, num encontro mais aberto e verdadeiro, num olhar mais amoroso diante de uma situação, num modo mais atento e cuidadoso de como vou criando a minha realidade. O trabalho revela-se mesmo que não seja chamado: resvala pelos poros e insinua-se nos detalhes. Simplesmente acontece.

E então, vou me percebendo deixar fluir na vida, sem resistência, caminhando mais desperta rumo ao desconhecido.